segunda-feira, 28 de março de 2011

Sem choro nem vela

Basta um atleta tupiniquim se destacar, ganhar uma medalha ou prêmio  que lá vai uma equipe de reportagem mostrar a infância sofrida, a família humilde, lutando contra tudo e contra todos.  Ao final da cena, uma ou duas lágrimas.

Esta é a receita do sucesso.


É como se diretores, redatores e repórteres não soubessem tratar a coisa de outra maneira. Qualquer fato da vida real que mostre sofrimento, angústia ou desespero  alavanca  os índices de audiência e garante o emprego de uma cambada imediatista que usa respeito como figura de retórica.


O (desculpe o chavão) sangue, o suor e as lágrimas da verdade cotidiana de corações e mentes comuns inundam o repertório de imagens sem conteúdo, que tenta por descuido ou incompetência, transformar algo duro, cruel e latente  em espaço para o patrocinador.

Que essas palavras de crítica não sejam confundidas com um apelo a censura. Nunca! Jamais! Em tempo algum!  Isola, pé de pato, mangalô, três vezes.  Isso não volta mais.  Mas infelizmente,  a falta de censura é confundida com falta de escrúpulos. Nossa mídia confunde emoção com deslumbramento, irracionalidade com liberdade de imprensa, violência banal e gratuita com “jornalismo verdade”.

Somente para efeito de ilustração: as entrevistas nas páginas coloridas de uma revista semanal custam em média R$ 35 mil. Mostrar a casa e a cara numa outra revista colorida e descartável vale R$ 30 mil e pode ser pago em até 12 vezes. Até ano passado conseguir uma entrevista com um apresentador, um apresentador de peso, valia qualquer coisa a partir de R$ 16 mil.  Cantar em um programa dominical de uma rede de TV já foi mais caro. Hoje por R$ 6 mil canta-se no palco de um deles.

Parece censura, e é.


Preciso me reciclar.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Valdo e Tó


Aquela discussão começou quando Tó acusou Valdo de trapacear num jogo de búlica. Ele não se conformava em perder todas as bolinhas para Valdo.  Só no bafo de figurinha que Tó ia a forra.  Arrasava Valdo e partia pra briga que só terminava com a chegada das mães.
No colégio, brigas. Desde sempre. As mesmas namoradas em épocas diferentes; salas distintas disputando torneios; monitores de turmas diferentes...  em tudo competiam e revezavam vitórias. Na faculdade pertenciam a partidos e chapas distintas. Tó ganhou o DA, mas Valdo o DCE.  Na  eleição  seguinte a coisa inverteu.
Valdo formou primeiro, mas a festa do Tó foi melhor.
Estagiaram em empresas diferentes e foram contratados em definitivo no mesmo mês. Tó ganhava mais, mas Valdo trabalhava menos. As duas empresas disputavam as mesmas concorrências e lançavam obras fantásticas. Tó foi promovido a gerente de projetos enquanto Valdo ganhou uma bolsa na Europa. Comemoraram no mesmo bar e se estranharam novamente quando escolheram a mesma mesa.
Eram casados com duas irmãs que se frequentavam. Tinhas filhos que eram amigos, brincavam, estudavam  e viajavam juntos.  Quando mudou para  Londres com a família, o filho de Tó foi junto, para estudar.  Valdo ficou sabendo que Tó tinha sido novamente promovido. Agora era diretor da empresa. Valdo voltou e buscou uma promoção.
No sindicato, partidos diferentes, chapas  diferentes. Valdo era presidente.  Tó,  dissidente, criou um sindicato alternativo só para brigar. Valdo protestou, brigou e decidiu ir até o fim. Candidatou-se a deputado num partido. Tó em outro. Foram eleitos. Valdo teve 43 votos a mais que Tó. Brigaram.
No Congresso, nem se fala. Valdo acusava Tó de vendas de ‘habite-se’ e Tó dizia a qualquer um que tinha provas que Valdo estaria envolvido em escândalos financeiros. Valdo afirmava que possuía um dossiê completo das armações de Tó, que se defendia dizendo que o dele era maior ainda. Brigas.
Enriqueceram.
Eram padrinhos de diferentes escolas de samba e clubes de futebol que alternavam campeonatos, vitórias, derrotas e desentendimentos. Muitos até.
 Um amigo comum - e eles tinhas vários - resolveu intervir e acabar com  o problema. Convidou os dois para uma conversa franca, definitiva, onde, talvez, conseguiriam acabar com as diferenças que acumularam desde a infância. Sem brigas. Pegaram caminhos diferentes para chegarem em horários diferentes.
Tó chegou primeiro.
Valdo não chegou.
Valdo nunca mais chegaria a lugar algum.
Pela primeira vez Tó se conformou com a derrota.


terça-feira, 22 de março de 2011

Esculhamba baixinho

Tem gente que acha que o português falado no Brasil é mais parecido com o espanhol do que o português de além mar, o português alfacinha, o português alentejano. Exagero. Falamos português, mas um português suingado, com generosas doses do tupi-guarani. 


Falamos “uai” e “cabra da peste”, com a mesma naturalidade como falamos ‘parcimonioso’ ou ‘encaminhamento protocolar’. Isso é ginga brasileira, é adaptação, é metamorfose.  Mas aqui no Brasil também falamos um dialeto português-inglês. Vamos a shopping centers comprar um jeans no off price. Pedimos um fast food pelo delivery.

Existe uma entidade internacional chamada PALOP – Países de Língua Oficial Portuguesa, que  tentando não esquecer nenhum, fazem parte: Portugal, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau, Cabo Verde e Timor. Poderíamos também incluir Macau, um enclave no sul da China, e o Brasil. Esses países fazem o Português ser a 7ª língua mais falada no planeta, atrás do Mandarin, Árabe, Indiano, Inglês e outros que tais...  De cada quatro pessoas no mundo, três falam essas sete línguas. O restante fala uma  das mais de 3.000 outras.

O grave é que uma pesquisa de tucano-linguístas afirma que até o ano 2100, o Português será uma língua morta, vítima da globalização e do poder econômico das culturas dominantes. É uma previsão terrível mas que faz todo sentido do mundo. Em vários países existem leis que protegem o idioma natural, o falado pela maioria absoluta do povo. 


Na França, por exemplo, a rede de lanchonetes Mac Donalds teve que se adequar as leis de lá.  Até um simples (?) “Big Mac”, que é o sanduíche mais popular da rede americana de lanchonetes, na França tem outro nome. É único lugar onde um “Big Mac” não chama “Big Mac”. Será que devíamos ter leis assim?

Pode parecer bobagem e realmente temos problemas muito maiores, mas que abusamos do estrangeirismo, abusamos. É ‘flórida!’

No Brasil, liquidação virou ‘off price’; TV é "Globo News', jogo decisivo é ‘play off’; entrega em domicilio virou ‘delivery’. Isso é abuso. Poderíamos pensar em criar uma limitação para os estrangeirismos. Não tem que ter ‘delivery’. Tem que ter entrega em domicílio. E se o comerciante achar que tem um monte de americano como freguês, bota uma placa também com um ‘delivery’ embaixo.

Hoje o inglês é um ativo estratégico da hegemonia americana, não só comercial, industrial ou bélica, mas cultural. É preciso contra-atacar.  É preciso resistir, como fez a França ou a pequena e distante Islândia, um país de pouco mais de 250 mil habitantes, onde mais de 90% fala também o inglês, mas somente quando precisam falar inglês. Tudo que aparece de novo em inglês eles procuram no seu idioma, no islandês – complicadíssimo - as palavras que se adapta a sua vida cultural e social.

O abuso de estrangeirismos funciona como uma forma de exclusão. Antes tínhamos a exclusão pela renda, agora criamos uma nova: a de quem não conhece expressões moderninhas como ‘play list’, ‘stand by’, ‘tele cine emotion’, edifício ‘Independence’, e outras bobagens do gênero.

O idioma é parte da identidade de um povo. Deve ser preservado, deve ser cultuado, ensinado e defendido, até mesmo de inocentes úteis que acham chique ter um nome inglês no nome de sua loja ou na camiseta da moda.


Não falo que temos que alimentar qualquer tipo de resistência ou de rejeição a qualquer língua estrangeira. Pelo contrário, devemos incentivar o ensino de outras línguas. Isso vai aumentar o gosto e a auto-estima pela língua portuguesa. 


Sem essa valorização e pelo abandono das atividades culturais, comemos nossa própria alma. A alma que há no nosso idioma descaracterizado, nas artes relegadas, nas tradições desfeitas todos os dias pela ambição desvairada da imitação do que vem do estrangeiro.  Bye bye.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Meu guri

Camisa surrada, calça jeans e sandália, um menino dorme em um banco na praça São Januário, no centro de Ubá, entre a sujeira deixada pelos donos de uma lanchonete próxima e porta lacrada de um prédio público.

Só acorda quando ouve algum barulho estranho - algum rapazinho tirando onda, ou um carro de vedete, com som auto e de gosto duvidoso. Tais interrupções acabam com seu sono triste, com a trilha do choro baixinho.

O menino sempre fica por ali, acomodado em um estranho banco da praça que recebe o nome do padroeiro, ou debaixo das marquises pra fugir do sereno ou da chuva. Dorme abraçado a uma muda de roupa e a uma garrafa de coca-cola. Ele acha que tem sorte. Está melhor que a maioria dos amigos, desesperados, presos ou mortos. 

Como lavador de carros – não na praça, feudo de “coisa ruim”, como ele mesmo diz, mas em um estacionamento próximo, em uma das principais ruas do centro, não fatura mais que R$ 10 por dia, mas é dinheiro suficiente para não passar fome nem precisar virar “bicho”, disputando o lixo com os vizinhos que latem e os ratos de asas chamados de pombos.

Diz que já trabalhou como entregador de farmácia e passeador de cachorro. Confessa que faz programa com gente que busca prazer a todo e qualquer preço: “saindo, ganho quase um mês de lavação. A única coisa que não faço é beijar na boca, isso não!” Tem casa, mãe e padrasto num bairro pobre, sem saneamento, nem sonho, nem esperança: “Vou pra lá de vez em quando, mas não consigo ficar... muito problema, muita coisa errada”, justifica, com estranho e incrível bom humor.

Estou no caminho de casa e a chuva fina faz estrangular o tempo e apertar o passo. Nossa conversa termina como começou, repentinamente, sozinha, num misto de curiosidade e compaixão. Já havia percebido sua presença há algum tempo, mas nunca havia parado. Por medo, pressa ou insensibilidade, sei lá. 

Não tem mais de 12 anos e dorme na praça que leva o nome do padroeiro da Cidade Carinho.  Pode parecer clichê, mas a vida, às vezes, é bem mediocrezinha...

terça-feira, 15 de março de 2011

Espaço, corpo e, se puder, tempo



Nunca em nossa história, desde Cabral e seus marujos, vivemos períodos de estabilidade social.Na fase colonial a nobreza e os armados oprimiam, prendiam, matavam e  saqueava em nome do Rei. Loteavam o país em latifúndios do tamanho de países, terras hereditárias. Autorizavam expedições particulares em troca de participação nos lucros e garantiam o  prejuízo dos aventureiros capitalistas. Bancavam naus, emprestavam caravelas, pagavam marinheiros, negociavam com estrangeiros, vendiam a prestação.
Depois viramos “Reino Unido”. Tinha um Rei aqui. Diz a história que era um rei comilão,  reservado... governava sob o julgo Inglês, não deixava de cumprir compromissos com a Europa rica, mesmo subjugando seu súditos tupiniquins, que teimavam em falar Tupi-Guarani só porque era proibido.
Independência. Ou morte. Viramos Império, um enorme império, um enorme Portugal. Mudou pouca coisa. Nosso imperador devia muito aos ingleses, detestava o calor tropical e se entregava aos prazeres mundanos com uma fome adolescente. Menos mal. Sobrava mais tempo para os colaboradores, que oprimiam, prendiam, matavam e saqueavam em nome do imperador.
Viramos República. Uma grande e injusta república de frente para o mar. Na verdade, várias repúblicas chefiadas por “coronéis” e suas milícias, que usavam as mesmas terras hereditárias. Só eles oprimiam e etc, só que agora em nome deles mesmos.
Passamos por ditaduras e  continuamos uma grande república, dividida em grandes feudos improdutivos, especulativos, um enorme socialismo capitalista. Dividimos sacrifícios, enviamos dividendos. Construímos enormes indústrias, monumentais usinas, fantásticas rodovias, bancos fortes e indispensáveis. Nos especializamos em sucateá-las e mal dizê-los. Estamos devolvendo tudo em 'tenebrosas transações'. Assim como Cabral nos dão espelhos e miçangas em troca de nossa alma brasileira.


Somos um grande país que merecia ser uma grande nação.  


Não há lugar algum no planeta que tem tanto, tanto, tanto assim. 
Somos o oásis do globo, reserva bioquímica, refil de água doce, paraíso da vida selvagem.
Aqui judia ama palestino, sérvio é sócio de bósnio, líbio namora americana. Hutus, zulus, e urubus batem pelada no aterro. Nosso povo é bom de bola.
Deveríamos exportar essa cordialidade.
Somos um continente.
Temos rios no deserto, um rio que é um mar, a maior praia do mundo.
Uma só língua, uma só bandeira, uma só pátria.
Será que não merecemos um destino melhor?
Deveríamos parar de conversar e prestar mais atenção na estrada que é longa e falta muito pra chegar...
A solução esta ai, lendo este texto ruim.
Foi bom perceber esse sorriso inteligente...

sexta-feira, 11 de março de 2011

Quem é essa mulher?


Faz tempo.  Mais  de 150 anos.  
Era um distante 8 de março de 1857, uma quarta-feira comum, como todas as outras feiras do mundo. E foi nos Estados Unidos, antes mesmo de sua Guerra Civil que matou quase 1 milhão e começaria quatro anos depois.
Mas, naquela quarta-feira, operárias de uma fábrica de tecidos de Nova Iorque fizeram uma greve. Não queriam vale-transporte, nem aviso prévio. Queriam oxigênio, água e tratamento humano. A repressão foi brutal. Trancadas no interior da fábrica, cerca de 130 morreram carbonizadas depois de um criminoso incêndio. A polícia agiu rápido. Abriu um rigoroso inquérito para apurar as responsabilidades. Adivinha quem foi culpado? Elas.

Injustiças desta natureza acontecem desde que o mundo é mundo. Lá como cá, mulheres são reprimidas, injustiçadas, castigadas. É só lembrarmos de Zuzu Angel , estilista brasileira que fez sucesso com seu estilo em todo o mundo. Nos anos 70, seu filho Stuart, ativista contra o regime militar, foi preso e morto nas dependências do DOI-CODI. A partir daí, Zuzu travou uma guerra contra tudo e todos pela recuperação do corpo de seu filho. Essa luta só terminou com o segundo assassinato - mais um -  em 1976,  por agentes da ditadura. O assassinato foi forjado para parecer um acidente de carro no  túnel que hoje leva seu nome, na entrada da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. O corpo de Stuart nunca foi encontrado. Em homenagem à estilista, Chico Buarque compôs a bela 'Angélica', em 1977, um conforto, talvez inútil, para aliviar a dor das mães que perderam filhos, no passado e no presente.

A Zuzu Angel, mãe de Stuart, morto pela repressão; a Rosa Cristina,  mãe do menino João Hélio, de 6 anos, arrastado pelas ruas do Rio; a Edna Ezequiel,  mãe da menina Alana, destino de uma bala de fuzil perdida em um confronto entre bandidos e policiais; a Cissa Guimarães, mãe do belo Rafa, morto estupidamente num mais estúpido ainda atropelamento na Gávea. Um beijo e meu pedido de desculpas. Foi o que me deu vontade - necessidade - de fazer vendo imagens e reportagens sobre o – ou seria a - tsunami.

Sem intenção alguma de ser piegas, quero somente externar um sentimento de pai.  Não há explicação para sentimentalidades, mesmo quando um colega repórter, estúpido, ao lado de uma mãe sem notícias de seu filho na tragédia japonesa faz aquela pergunta tão batida em matérias desta natureza: Qual era o maior sonho de seu filho? A resposta não poderia ser outra, não poderia ser melhor: “...enquanto ele não der notícias, não existe sonho, não existe nada ...”


Identidade secreta


Se você prestar bem atenção perceberá que você está muito diferente da foto que está na sua carteira de identidade.
Certos traços perderam-se no tempo.  E à medida que ele -  o tempo - , passa, a carteira vai ficando cada vez mais restrita a um mínimo público.
Boa parte da culpa pelo descontentamento vem da tecnologia. Máquinas e profissionais não ajudavam. O fundo branco, feito de pano nem sempre impecável, um paletó comunitário e, acreditem, até um batonzinho básico coletivo estavam à mão.
Nada de photoshop, nada de retoques. Era só ficar na posição, levantar o ombro, ficar parado esperando o flash e pronto!  Seu mico está registrado para sempre nos seus documentos mais importantes.
Na minha mão agora a foto do meu primeiro passaporte. Tirei quando morava no Rio. A foto foi tirada no verão de 1985.  Quando tinha que apresentá-lo, os caras queriam saber onde está aquele moreno da foto. Às vezes era embaraçoso.
Mas comparando fotos antigas de documentos percebemos que os rostos mudam. A gente cresce, é lógico, e a forma do rosto que já foi mais afinada está mais saliente agora. Os cabelos eram fartos, cheios, encaracolados. Hoje, na moda, chapado, dourado. O tempo passou deixando suas marcas gravadas no corpo. Mudamos, envelhecemos e modificamos. Mudamos também o pensar, o sentir, o falar. As marcas do tempo nos fazem sentirmos vivos.
Saque sua carteira de identidade e apresente aos amigos. Mostre que você viveu, vive. Seu cabelo mudou, suas bochechas cresceram, o pescoço sumiu! É. O tempo fez bem. Consideravelmente estamos mais bonitos. Podemos perceber, e isso graças aquele instante que ficou registrado naquele pequeno estúdio de fotografias 3x4, que viver vale muito a pena. Vez por outra vem a certeza que crianças somos a vida inteira, o que muda é o preço dos brinquedos.