sábado, 26 de fevereiro de 2011

Mais um campeão de audiência



“Aristóteles estava errado: não é a arte que imita a vida, é a vida que imita a arte”

                                                                                                                                                                                            Oscar Wilde, em 1901
            
O jornalista Cláudio Tognolli, articulista da “Caros Amigos”  justifica a frase acima com um questionamento: “Onde estavam as névoas de Londres antes que Turner as pintasse? Não existiam. As pessoas começaram a vê-las depois que ele as pintou.”  Pois bem, agora , mais uma prova que Aristóteles estava errado: A CIA, o FBI e o Departamento de Estado Americano estão buscando com roteiristas de Hollywood dicas de quais seriam as próximas ações de Kadafi. 

“Mas deixando a profundidade de lado”, e como “manda quem pode e obedece quem tem juízo” e para acabar com esse abuso das aspas, ninguém vê o Brasil que não passa na TV. Mas por que ninguém vê? Não vê porque não olha. A população brasileira quase que passivamente aceita essa situação porque nos últimos 40 anos praticamente  conviveu com a onipresença do monopólio da mídia eletrônica. Não se sabe como seria a vida sem ele.  A Rede Globo, por exemplo, detêm metade da audiência, 75% da verba publicitária e conta com mais de 60% dos assinantes da tevê por assinatura. A família Marinho é dona de trinta e tantas emissoras em São Paulo,  Paraná, Minas,  Rio, Brasília e Recife. É um enorme monopólio, inédito no mundo.

Vamos tirar a burka e descobrir: Sabe por que até hoje não foi implantado o Conselho de Comunicação previsto na Constituição de 88? Os deputados e senadores ligados ao monopólio simplesmente seguram qualquer tentativa de interferência da sociedade organizada nas programações. O resultado é que, hoje, na prática, não existe qualquer controle social dos meios de comunicação.

Sabe por que o desfile das escolas de samba do ano que vem não vai mais começar às 19, e sim às 21h? Porque a detentora dos direitos de transmissão precisa garantir que o Jornal Nacional entre no horário e garanta seu faturamento. Sabe por que tal jogo da seleção brasileira vai ao ar neste ou naquele horário? Porque contratualmente com a empresa privada que usa a marca “Seleção Brasileira” a Globo tem o direito de opinar para adequar os jogos à sua grade de programação. E tem o direito até de entrevistar com exclusividade atletas e membros da comissão técnica após os jogos. Recentemente um técnico tentou mudar isto e bateu de frente, não é Dunga?

Sabe por que se a gente perder o Jornal Nacional não consegue engrenar o papo no botequim? Porque a agenda do imaginário brasileiro é construída a partir de sua  audiência. Quem não o assiste fica meio fora do mundo, porque o balizamento dos temas em questão é feito por ele. No Brasil, chegou-se ao cúmulo de sermos obrigados a assisti-lo pelo menos para criticá-lo.  Sabe por que as TVs públicas vivem na miséria e mal conseguem se manter no ar, impedidas de impulsionar suas programações com faturamento publicitário? Porque a ABERT não deixa, alegando que seria "concorrência desleal" com as redes comerciais. Sabe por que o espaço para a produção regional é tão restrito? Porque não interessa aos monopólios abrir mão do controle da programação. Tal controle, sob o pretexto de evitar a manipulação, fez inclusive com que a 'Globo' anunciasse que está assumindo diretamente a direção de jornalismo de suas afiliadas em todo o país.

Coisas do monopólio. Ele é tão nefasto que, mesmo que se fuja dele mudando de canal, a gente dá de cara com ele outra vez, na forma das programações clonadas pelas outras emissoras. Aí, em vez da imitação, muita gente termina ficando com o original. Pelo menos pra ter papo no botequim.  

Obs: Acho que devo  citar minhas fontes: Observatório da Imprensa, Sem Fronteiras, Caros Amigos e minha cabeça, estalando de nova, que começou a ser feita em 1963.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Violência do jeito que se sente -II


             O que você mudaria na sua vida? Com que você anda convivendo e não suporta mais?
           Vamos lá...
           Faça um esforço.
           Deve haver muita coisa errada a seu redor e você nem da conta. 
           Os arrependimentos não entram nas estatísticas. 
           Nem os vacilos. “Ah, se eu tivesse escutado meu pai...  Se  eu tivesse casado com ela... a terceira fortuna do estado...  Devia ter feito vestibular para biblioteconomia. Hoje estaria tranquilo...  Se eu tivesse ido. Se não tivesse...” Nossas acomodações ficam na maioria das vezes exclusivas do público interno. Sofremos calados.

            Outro dia tive mais uma prova de que  não estamos neste planeta a passeio. Isso não é bem uma viagem de férias. Tudo vem, passa por nós e se vai. Tudo e todos que amamos se vão. Cedo ou tarde.  
            Perdi um amigo esta semana. 47 anos. Não nos víamos a mais de sete. Tinha um filho da idade do meu do meio, 13 anos.   Nestes anos que nos distanciamos deixei de encontrá-lo várias vezes. Um batizado que não fui; um churrasco de aniversário que tinha um compromisso; um Natal que, na última hora, desisti por não querer gastar com gasolina e hotel...
          
            Fui ao enterro. Viajei mais de 8 horas. Não exitei, fugi de compromissos. Não pensei em grana. Fico pensando se ele me ligasse convidando para uma pelada ou um churrasco. Será que eu despencaria de Ubá a São Lourenço? Com certeza não iria. 

            Queria profundamente mudar isso. Não é possível. Despedi-me de um amigo chorando muito, arrebentado por dentro, arrependido por não ter sido menos burocrático. Menos acomodado. Menos mesquinho. Menos normal.

            Fui enterrá-lo sem ter sido convidado. Ele não teve tempo.
            Essa vida,  às vezes,  é bem mediocrezinha.
            Até um dia, meu amigo.
            Nessa calma cristalina eu te encontro qualquer dia.
   A gente se encontra.
    Não mais no amarelo de um sol nem na cerveja de um bar.
            Juro que gostaria de ser poeta pra explicar isso melhor.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Histórias para ninar gente grande


Outra noite meu filho mais novo pediu para que contasse histórias de quando eu era como ele, pequeno. Comecei vasculhando as lembranças, ordenando memórias e apertando o peito de saudades. Lembrei de amigos distantes: Butterfly, Barata, Penumbra, Niender, James, Besteira, Pinduca, Morcego, Bentivi,  Socila, Zepanca e  percebi como eram tolos e engraçados os apelidos de infância.

O Rio de Janeiro dos anos 70 foi o cenário da história que comecei a contar a meu filho. Contei que estudava pela manhã no bairro que morava, Botafogo, enquanto meus companheiros, em sua maioria, iam à escola na parte da tarde. Brincava sozinho boa parte do dia. Descia para a rua e observava o tempo passar lento, no trânsito intenso da General Severiano, caminho para a Urca e para o Centro.  Lembrei do vento que cortava meu rosto e que empurrava as nuvens apressadas. E a caixa de recordações permanecia escancarada, quase em ebulição. Falei dos dos times de botão a bicicleta verde que partiu ao meio, assunto que despertou enorme interesse.  Acrescentei o autorama, os primeiros beijos, o pique-esconde e o surf mambembe.

Dos amigos contei pouco. Fiquei travado. Saudades dos distantes, saudade dos que encantaram, saudades das risadas descompromissadas e verdadeiras, das brigas e poesias, das canções e festivais. Das namoradas eternas, dos maracanãs lotados, do um e meio do Leme, das ondas, dos mares, dos lares, dos bares, do Sagres. Saudade do que eu fui e ainda sou. E por isso mesmo, doeu tanto ver o brilho da estrela que eu marquei no céu do Rio de Janeiro numa noite dessas de fevereiro de um 70 qualquer.

A história que contava sozinho, em silêncio para não acordar meu filho parecia não ter fim, parecia não querer ter fim. Queria poder reunir os rostos, os gestos e os apelidos em torno de uma mesa farta de som, luz e sonhos, que graças a Deus, não envelheceram.

Boa noite  e obrigado, meu filho. 


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Violência do jeito que se sente

José saiu de casa muito cedo. Mulher e três filhos ainda dormiam nos dois cômodos que fez nos fundos da casa de sua sogra. Sem tempo e zelo para o café ralo e puro, caminhou apresado rumo ao ponto da única linha de coletivos que serve sua comunidade. O bruto veio atrasado, lotado e mal cuidado, tarifado pela ida e pela volta por meio dia de serviço que José nem tem.
        Horas intermináveis com fumaça e buraco, pigarros e bocejos. Parecia uma coreografia mal ensaiada com bailarinos como ele. Fim do primeiro trecho numa Central do Brasil  muito longe de ser holywoodiana. José entre centenas, milhares talvez, de outros josés, manés e bonés. As portas fechadas por preocupação, o dia começando lá fora e a cidade descobrindo seus sons e sonhos urbanos. Camelôs e prostitutas, menores abandonados, ladrões e trabalhadores, todos em um mesmo fundo de tela. Vários josés, centenas de marias, outros tantos anônimos disputando uma corrida sem chegada, sem podium, sem nada.
         José confere o recorte de jornal: “Temos vagas”. Sonha novamente, pensa na mulher, nos filhos, na cachaça e no farto almoço. Na marmita, abobrinha frita e carne de pescoço. Mais lotação, mais condução, mais confusão. De novo lotado, de novo mais caro, José sacudindo rumo ao endereço recortado, mal cortado. No ônibus um grito, um susto, um assalto, um beijo, um pastor e duas putas. Um motorista rude, um cobrador sem alma, um ponto final longe da calçada. Desce José com o papelzinho na mão e uma esperança na cabeça. Fosse ele um cineasta do cinema novo faria um daqueles filmes que não são compreendidos.
         Desembola o papel e confirma o endereço. “Há Vagas”. José sorri, mas nem percebe.  Tempo não tem, mas lhe deram. Porta fechada. Reabre depois, quando o chefe quiser. José vê a obra, João olha as horas, caminha na calçada pro tempo passar, mas a fome não passa. Espera na banca lendo manchetes com outros josés, algumas marias: Palestinos  e atentados,  Congo e campos da morte, Argentina e desespero, preços sobem com o dólar, demissão de metalúrgicos, assassinatos de sem-terra, mandantes absolvidos, tiros na prefeitura, Líbia e Mubarak,  Ronaldo e Ronaldinho, Sarney e impunidade, crime organizado e polícia desorganizada, seca malvada, chuvas ingratas, padres pedófilos e comunistas ungidos, políticos canalhas e descuido ou descaso, tucanagens e petralhas, besteiras e mulheres peladas.
         Os sons da rua, uma rua do Centro, ambulância e pedintes, freadas e discussão, vitrines e ofertas, estudantes e secretárias, gravatas e apertos. José confere a porta fechada, fila de dez, doze talvez. Mais uma vez, a porta fechada se abre pro aviso – “ficha só depois do almoço! – procurem o dotô!”, que vai ver, nem formou, mas é doutor. José ganhou tempo sem pedir, pensa na mulher, pensa nos meninos, dois na escola sem professor, um com a avó. A mulher na lida, na luta, faxinando o sustento em casas vizinhas. Lembrou da promessa: “Só volto empregado!” Perdeu meio dia, mas não a marmita. Almoça sentado, é abordado por um PM fardado, os documentos mostrados, a dúvida, o esculacho, o desrespeito, a vergonha e a porta fechada.
          José pensa no bairro, na rua, na vila. Lembra do barro, do mato, dos ratos. Imagina ambulância, hospital, doutor, vacina, saneamento, escola, condução, jornal, prefeito e polícia no seu bairro distante, feudo de traficante. Ri sozinho do dengo, do Mengo e da vida. Vasculha a memória, se lembra  de um sorriso que deu na infância, doce lembrança no sal da avenida cinzenta que mantém  portas fechadas.
          Porta aberta, José se assanha, se apressa e se apresenta pro mestre de obras que tem  emprego e afilhado, José chegou tarde. Porta fechada. Mais uma na cara. José desde cedo na rua, procurando trabalho, não quer ser bandido, não quer sem mendigo, não quer ver seus filhos chorando ou no crime, quer trabalho e cidadania, quer respeito e cafuné na nuca. José chora pra dentro, soluça escondido.
          Seis da tarde, hora de ir embora, gente com pressa andando ligeiro, esse é o Rio de Janeiro. Na volta pra casa, o pensamento distante, a promessa quebrada, um guarda safado, um bandido estirado, dois ônibus lotados, os últimos trocados,  o santo xingado, sua rua esburacada, sem poste, sem ambulância, sem segurança, um cachorro enjoado lhe morde o calçado, José chuta o bicho pro lado. Nesse instante surge a vizinha: “Não chuta o cachorro, José, violência não!”
          José nem responde. Não tem nem por onde.
          Em casa, outra porta fechada.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cartão postal


            Onildo, um ubaense de 30 anos que aparenta ter 40. Corpo magro, marcado e esguio. Falante e antenado, realizou o primeiro de seus três sonhos: conseguir um emprego. Onildo agora é auxiliar de serviços gerais em uma pequena fábrica de estofados. Ganha lá o salário mínimo. Ele diz que mora em Bonsucesso, mas na verdade, dorme na rua, bem perto da fábrica. Ele diz que mora numa casa para evitar o preconceito: “Se falar que durmo na rua, vão me esculachar”, explica. Diz que tem o segundo grau, feito aos trancos e barrancos. Mais aos trancos, é claro. Já foi casado, tinha casa e um Chevette. Trabalhava em um posto de gasolina. Morou no Rio de Janeiro. Perdeu a mulher, a casa, o carro e o emprego.  Não perdeu a simpatia. Menos mal.
            O segundo sonho é economizar R$ 80 para colocar próteses: “Quero sorrir de novo, pra poder voltar pra vida”, diz. Quando dá se vira com um pão molhado. Seu patrimônio cabe numa desgastada mochila: duas camisas, uma calça, partes de um par de meias, um par de botas e documentos.
            Onildo é parte de um novo conceito de brasileiro. Novo, não. Um finalmente reconhecido brasileiro: o “morador na rua”, e não “morador de rua”. Essa categoria de cidadão convive com mendigos e guris que cheiram cola, no condomínio a céu aberto das ruas da cidade. São optantes sem opção. São passageiros de uma série de políticas sem resultados. São fotografias sociais que insistimos em não perceber. São dezenas, talvez centenas de outros que a cidade descobre entre seus sonhos urbanos, seus camelôs, prostitutas, menores abandonados, seus ladrões e trabalhadores. São pessoas que perderam o direito de ir e vir. Vários onildos - e outros tantos anônimos - , que disputam uma corrida sem chegada, sem podium, sem nada.
            Talvez o terceiro sonho de Onildo seja o mesmo que o seu. Ou talvez ele nem saiba mais qual é. Vai ver que ele nem possa mais ter. Foi bom perceber esse sorriso inteligente.   

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Que dia é dia do repórter?



            Comecei a prestar atenção nas coisas do mundo em 1981. Havia acabado de entrar na universidade. Tinha 17 anos e fiquei deslumbrado e desbundado com aquele mundo infinito e mágico que é uma universidade federal. Um mundo duro, mas com generosas doses de carinho; difícil, mas com grandes placas de sinalizações; agnóstico, mas totalmente temente a Deus.
            Lembro que no primeiro dia de aula deixei uma espécie de marca registrada,que me acompanharia por quase toda minha vida acadêmica: insurgi contra a humilhação do trote:,  furar as letras “o” de uma página de jornal com um alfinete. O resultado de minha subversão foi outra página para furar. Fiquei conhecido como “o calouro do jornal”.  Não furo mais letras nem me desgastou em lutas utópicas que fizeram minha cabeça, mas ainda vasculho jornais com a mesma raiva que senti dos veteranos da UFF, com a mesma sede dos marujos de Cabral, com a mesma gana dos trabalhadores rurais sem terra que esperam pela terra prometida.

            A leitura de jornais está presente em minha vida desde sempre. Sempre vi meu pai lendo. Do Globo ao JB; de Érico a Luis Fernando, de pai para filho. Essa facilidade encravou em seus filhos – somos quatro – o hábito de ler, desmembrar, recortar, comentar e principalmente corrigir; termo suspeito e sujeito as ideologias que, mesmo sem querer, vão aos poucos direcionando o ideal valor do certo e o preço que pode ser pago pelo errado. Toda correção é passível de interpretação. Somos árbitros e faço questão de exercer esse direito sagrado, herança divina registrada no cartório do Céu.

Sei que há distância entre a História e a imprensa no Brasil. Disso todos sabem. Mas penso que existe em qualquer idioma, sob qualquer bandeira. Quando entrei para o movimento estudantil desenvolvi essa mania de ser romântico e utópico, de achar que os sonhos não envelhecem. E isso vicia. E sem poder parar de alimentar meu vício, leio jornais diariamente. É quase uma compulsão, mesmo achando que a única notícia realmente confiável dos jornais é a data, mesmo ela, que é uma mentira: o hoje foi escrito ontem, para parecer amanhã. Ainda que se atacasse o maior vilão da história do país – país em que os vilões podem ser heróis de acordo com o jornal que escreve sua história – não seria aceitável que, a pretexto de denunciar crimes, a imprensa cometesse outros.

            Jornalismo é 50% verdade e 50% fantasia. Temos a difícil tarefa de manter a balança equilibrada. Não sei o tamanho do mal que pensar assim me causou. Nem sei se tem reversão. Só sei que faria tudo de novo. Pela qualidade da minha geração.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O lado de dentro dos rótulos

Quem vê as belas mãos e os pés descalços não imagina seus 73 anos. Desembaraçada e receptiva, nossa entrevistada tornou fácil e agradável a tarefa de cumprir a pauta. Dona Alzira é uma dessas pessoas que encantam pela simplicidade. Fez questão de me fazer entrar, sentar e ficar à vontade, enquanto passava um fresco café, contrariando todas as lições passadas pelos profetas que anunciam que “de perto ninguém é normal”.
O café foi meu primeiro presente. O cheiro forte da efusão, o gosto encorpado do pó e  o contraste com o açúcar adoçaram, literalmente, nosso bate papo, entre xícaras e um gravador.
            Nome? Idade? Filhos? Gosta de morar aqui? Perguntas comuns, obrigatórias, todas amarradas pelos manuais e pelas receitas de bolo que costumam ser os perfis. Não fiz nenhuma delas, mas ela respondeu a todas, sempre sorrindo, sempre adiantando respostas.
            Dona Alzira é franca, e franqueza às vezes arranha.
         
         Tem uma forma clara de levar a vida, com coragem e honestidade. Esse negócio de “levar vantagem em tudo” não serve para ela. Sabe consertar coisas: um alicate, uma chave de fenda, fita isolante e pronto! Só não conserta o que não tem jeito, embora tente primeiro. Gosta de bandas de música, adora dobrados. Quando escuta, volta a ser menina. Lembra do tempo que seu Ambrósio a levava pela mão, para escutar, no coreto do jardim a “22 de Maio” tocar.
            Gosta dos vizinhos, gosta da cidade, gosta até de novela. Estudo não tem, ou melhor, estudou até aos 15 anos, casou aos 19. Criou filhos e raízes na Arnaldo Jansen. Comerciante e costureira, gosta de música romântica e detesta o Faustão. Prefere um do SBT, que nem eu nem ela lembramos o nome.
            Tem mania de fazer palavras cruzadas, é craque. O bolo de difíceis “Recreativas” era prova mais do que necessária para não questionar seu vocabulário. Gosta indecentemente dos filhos. O que um sente, ela sente também, até da filha Regina Helena, espiral de dor, incurável, precoce, irreparável, injusta e intolerável perda. Dor desatinada compartilhada com o marido e filhos.
Quase perguntei como Regina Helena morreu. Ainda bem que me calei, e calado permaneci, olhando seus olhos miúdos espremidos atrás dos óculos, enxergando a vida através da saudade. Percebi a tempo que os rótulos de uma avenida são tristes quanto vistos por dentro. Nunca mais escrevo esquina da morte com maiúsculas.
Mas Alzira sabe que mesmo triste, o olhar é para frente, que a vida á para ser vivida com alegria, com amor, com esperança e fé! Ela sabe e ensina. Ensina aos filhos com vivência, com bem-querer. Por eles vai aos céus, e já desceu aos infernos. Para eles deixará, como seu pai deixou, a herança maior, que a vida é luta, é fardo, é dor, mas também é alegria, é prazer, encontro, honra, caráter e amor.
O que importa mesmo é uma lembrança boa, uma saudade doida, doída, companheira. Alzira disse isso sorrindo com o corpo todo, boca, mãos, quadril. Senti falta dos olhos, mas entendi porquê.
            Sai de lá com saudades de um amigo já encantado e tive mais uma prova de que não estamos neste planeta a passeio. Isso não é bem uma viagem de férias. Tudo vem, passa por nós e se vai. Tudo e todos que amamos se vão. Cedo ou tarde. Queria profundamente mudar isso, mas não é possível. Me despedi de Dona Alzira chorando por dentro. Essa vida, às vezes, é bem mediocrezinha. 
            Até um dia, Regina Helena. Até um dia meu amigo. Obrigado dona Alzira, e me desculpe, mas não vou tirar fotografias.