segunda-feira, 25 de julho de 2011

Certos mineiros - II

Paulo Hugo Morais Sobrinho, o  Paulinho Pedra Azul, é um cantor, poeta, artista plástico e compositor brasileiro nascido em Pedra Azul, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, no dia 3 de agosto de 1954.

Com um estilo que varia do romântico à MPB, fortemente influenciada pelo Clube da Esquina, e com algumas composições de chorinhos, Paulinho tem diversos discos gravados, a maioria deles independentes. É também autor de  telas a óleo e acrílico e de 15 livros, dentre eles “Delírio Habanero - Pequeno Diário em Cuba”, escrito durante visita à ilha de Fidel Castro.
Apesar de não ser um constante freqüentador da mídia de massa, Paulinho consegue ser conhecido por um segmento específico que envolve principalmente formadores de opinião. 
Pesquisa feita pela AMAR (Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes), o destacou como o segundo cantor mais conhecido de Minas Gerais, perdendo apenas para Milton Nascimento.
A sua canção mais conhecida é "Jardim da Fantasia", que, segundo o próprio Paulinho, á apelidada de Bem-te-vi. Uma canção de despedida...

"Bem te vi, bem te vi
Andar por um jardim em flor
Chamando os bichos de amor
Tua boca pingava mel
Bem te quis, bem te quis
E ainda quero muito mais
Maior que a imensidão da paz
Bem maior que o sol
Onde estás?
Nas nuvens ou na insensatez
Me beije só mais uma vez
Depois volte prá lá."

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Certas canções


Tenho várias canções em minha trilha sonora. Uma especial: “Equatorial”, dos Borges e do Beto. Quando escutava voltava no tempo. Tempo de mim. Tempo em que vivia no Rio, de janeiro a janeiro pegando onda, como se isso fosse a coisa mais importante a fazer. 

“Equatorial” fazia isso comigo. Sempre acontecia. Mas sempre não é todo dia. Agora não acontece mais. “Equatorial” será sempre a canção tema da saudade de meu pai. Nem sei bem por que.Talvez seja pela lembrança de quando vivia com ele. Talvez não. Só sei que senti uma vontade maluca de escutar “Equatorial” hoje. 


Uma vontade que chegou como se fossem as ondas do Leme ou das lembranças necessárias. 

Meu pai era muito. Era muitos. Era todos. Provedor, brigador, defensor e brincalhão. Fez do Rio sua cidade, de Botafogo seu domínio e do América seu clube do coração. Fez de mim o que sou. 

Quando nasci meu pai já o era de três meninas do Brasil. Durante minha adolescência era a autoridade sem porrada, sem grito, na palavra, no exemplo. Viveu uma vida sem muitos problemas. Nunca o vi preocupado, desgastado, desapontado. Era divertido. O som de sua risada era sinal de liberdade, de cumplicidade, de paciência, de relação. Isso me fez pensar que fiz o que quis de minha vida. Besteira. Tornei-me o que ele forjou. 

Sou sua estante de livros, sua roda de amigos, sua caminhada na praia, sua cerveja gelada, seu vinho tinto seco. Sou sua mesa de trabalho arrumada, suas canções que falam de Brasil e de mundo. Sou sua paixão por Van Gogh, Nietzsche e Luis Gonzaga, sou sua tuba na Filarmônica e seu discurso em latim. Mas apenas um pedaço pequeno disso tudo. 

Ele me ensinou que ainda falta muito para tornar-me a pessoa que quero ser. Tenho que ter paciência.

Minha estúpida cabeça de poeta é mesmo assim, quando soam os sinos, voam os pombos dentro de mim. 

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A lição sabemos de cor


Nossa cidade é um conjunto de coisas e todas essas coisas se relacionam. Existe equilíbrio em alguns pontos e desequilíbrio em outros. A cidade é parte do município que também tem a sua zona rural e está dentro de uma bacia hidrográfica, que é a região servida pelos rios e córregos. Tudo isso faz parte de um ecossistema.

No Brasil essa causa sempre rendeu seminários, teses de mestrado, passeatas estudantis, engajamento de ONG’s e até um partido político.
Ubá também tem seminários, ONG ecologicamente correta e até representante político do Partido Verde. Tem até o “Dia da Manga Ubá”. Só não tem o dia do lixo urbano, o dia da despoluição sonora e principalmente, o dia da cidadania, que deveria ter um dia todo dia.

Olhando em volta, respirando fundo, ninguém seria capaz de achar que estamos bem. Todos gostaríamos que a paisagem fosse limpa e equilibrada, mas na verdade convivemos com uma degradação ambiental avassaladora, contínua, cruel, que transforma todos nós em agentes dessa destruição. Crescimento desordenado, ocupação das encostas, destruição dos mananciais, córregos transformados em escoadouro de esgoto “in natura”, trânsito ruim, caminhões e suas toneladas nas ruelas de bairros e do centro, carga e descarga sem regras ou horários e outros transtornos urbanos.

Desde a Miragaia, o Rio Ubá peleja e luta para continuar vivo, ou quase isso. Paradoxalmente, o que mantém seu movimento lento, grosso, com estranhas cores e cheiros, é o que o mata: o esgoto, bombeado através de aproximadas 30.000 válvulas de descarga doméstica. A cada descarga, algo próximo a 10 litros de água é despejado no rio, levando junto toda sorte de dejetos. Imagine uma média de 10 descargas/dia por válvula. Seriam três milhões de litros de água injetados diretamente no rio. Esse volume é que mantém o rio seguindo seu leito, do contrário, ele se transformaria numa poça escura e fétida. Isso sem contar o descuido e o descaso, tão nocivos quanto o esgoto.

O modelo de preservação que vigora em Ubá é o modelo imediatista e neoliberal que diz assim: “preservar essa área pra que? Vamos construir um novo bairro que ai vai ter casa pra todo mundo”. Mas não precisa ser em área de nascente, de mata, de encosta, área de risco, sem qualquer infra-estrutura.
O modelo atual diz também: “não interessa se tal fábrica polui. O importante são os empregos que ela gera.” É uma prática suicida porque tenta sobreviver em cima das feridas que cria. O modelo faz ameaças usando as fraquezas da sociedade. O mesmo modelo que hoje polui, amanhã estará vendendo filtros contra poluição. A mesma empresa que vende o agrotóxico, vende o remédio para o câncer que o agrotóxico causa. E as autoridades esquecem de uma coisinha básica: saneamento, reciclagem de lixo, reflorestamento também geram empregos, renda e qualidade de vida.

Se quisermos ser uma sociedade justa, igualitária, digna para todos, não podemos aceitar os argumentos e muito menos utilizar os métodos vigentes. Para limpar a nossa cidade demanda tempo, mas tem que haver um começo, não só pela de sobrevivência do meio ambiente, mas também pela sobrevivência dos nossos sonhos.

Certos Mineiros

:"Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu"


Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros em outubro de 1922. Formou-se em Antropologia em São Paulo (1946) e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia (1946/1956). Neste período fundou o Museu do Índio e estabeleceu os princípios ecológicos da criação do Parque Indígena do Xingu.
Dedicou-se à educação primária e superior. Criou a Universidade de Brasília, de que foi o primeiro Reitor, e foi Ministro da Educação, no Gabinete Hermes Lima. Mais tarde, foi Ministro-Chefe da Casa Civil de João Goulart e coordenava a implantação das reformas estruturais quando sucedeu o golpe militar de 64, que o lançou no exílio.

Exilado, viveu em vários países da América Latina, onde conduziu programas de reforma universitária, com base nas idéias que defende em A Universidade Necessária. Foi assessor do presidente Salvador Allende, no Chile, e de Velasco Alvarado, no Peru. Recebeu ainda títulos de Doutor Honoris Causa da Sorbonne, da Universidade de Copenhague, da Universidade da República do Uruguai e da Universidade Central da Venezuela.
Retornando ao Brasil voltou a dedicar-se à educação e à política. Elegeu-se Vice-Governador do Estado do Rio de Janeiro (1982), foi Secretário da Cultura e Coordenador do Programa Especial de Educação, com o encargo de implantar 500 CIEPs, que são escolas de turno completo para crianças e adolescentes. Criou, então, a Biblioteca Pública Estadual, a Casa França-Brasil, a Casa Laura Alvim, o Centro Infantil de Cultura de Ipanema e o Sambódromo, em que colocou 200 salas de aula para fazê-lo funcionar também como uma enorme escola primária.

Contava entre suas façanhas maiores haver contribuído para o tombamento de 96 quilômetros de praias e encostas, além de mais de mil casas do Rio antigo. Colaborou na criação do Memorial da América Latina, edificado em São Paulo com projeto de Oscar Niemeyer.

Elegeu-se Senador da República (1991), função que exerceu defendendo projetos, entre eles uma lei de trânsito para proteger os pedestres contra a selvageria dos motoristas; uma lei dos transplantes que, invertendo as regras vigentes, torna possível usar órgãos dos mortos para salvar os vivos; uma lei contra o uso vicioso da cola de sapateiro que envenena e mata milhares de crianças. Elaborou e fez aprovar no Senado e enviar à Câmara dos Deputados a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, sancionada pelo Presidente da República em 20 de dezembro de 1996 como Lei Darcy Ribeiro.

Entre 1991 e 1992, planejou e fundou, em Campos, no Rio de Janeiro, a Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF (1994), com a ambição de ser uma Universidade do Terceiro Milênio. Durante a Conferência Mundial do Meio Ambiente - ECO 92 - realizada no Rio de Janeiro, em 1992, implantou o Parque Floresta da Pedra Branca, numa área de 12000 hectares, para se tornar a maior floresta urbana do mundo.

Ainda no exílio, começou a escrever os romances Maíra e O Mulo e, já no Brasil, escreveu dois outros: Utopia Selvagem e Migo. Publicou Aos Trancos e Barrancos, o melhor livro do Brasil, um balanço crítico da história brasileira de 1900 a 1980. Em 1992 foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras.

Darcy Ribeiro faleceu em 17 de fevereiro de 1997. No seu último ano de vida, dedicou-se especialmente a organizar a Universidade Aberta do Brasil, com cursos de educação a distância, para funcionar a partir de 1997, e a Escola Normal Superior, para a formação de professores de 1º grau. Organizou a Fundação Darcy Ribeiro, instituída por ele em janeiro de 1996, com sede própria, localizada em sua antiga residência em Copacabana, com o objetivo de manter sua obra viva e elaborar projetos nas áreas educacional e cultural. Um de seus últimos projetos lançado publicamente, foi o Projeto Caboclo, destinado ao povo da floresta amazônica.

"... termino essa minha vida exausto de viver, mas querendo ainda mais vida, mais amor, mais travessuras. A você que fica aí inútil, vivendo essa vida insossa, só digo: - Coragem! mais vale errar se arrebentando do preparar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois seremos matéria cósmica. Apagados minerais. Para sempre mortos."





quinta-feira, 7 de julho de 2011

Um francês no Xopotó?

      
Guido Tomas Marlière era francês. Era o que diziam. Nasceu em 1767. Foi soldado monarquista combatente da Revolução Francesa quando tinha 22 anos. Lutou ao lado da elite francesa, cuja base era a desigualdade social.  Lutou, portanto, ao lado dos que perderam. Por isso mesmo foi obrigado a asilar-se na Inglaterra, onde não se deu muito bem, uma vez que, com as execuções do rei francês Luís XVI, em janeiro de 1793, e de sua esposa, Maria Antonieta, em outubro do mesmo ano, qualquer francês simpático ao antigo regime deveria estar bem distante de Paris.
Marlière então se manda para Portugal e se alista como porta-estandarte no exército do cambaleante Império Português, que foi invadido em 1807 por um general francês de 1,58 metros, vaca fardada de Napoleão, que queria forçar Portugal a entrar no bloqueio continental contra a Inglaterra. Dom João VI, que governava Portugal substituindo sua mãe Maria que havia surtado, depois de pensar bastante, decide não magoar sua tradicional aliada Inglaterra nem enfrentar Napoleão e seus canhões. Dom João resolve se mudar para o Brasil, trazendo na bagagem milhares de súditos leais, entre esses estava Guido Marlière.
Numa noite fria, gelada até, de novembro de 1807, um tumulto formava-se às margens do Tejo. Cerca de 15 mil mil pessoas dentro de navios ancorados preparavam-se para uma fuga quase que desesperada. Toda a realeza, boa parte da nobreza e as camadas mais altas do clero se amontoavam em pequenas embarcações rumo às naus, fragatas e escunas que atravessariam o Atlântico. Outros 20 navios da marinha mercante dividiam a pesada carga do espólio português rumo ao exílio forçado.
Em  outubro de 1807, um mês antes da fuga, o príncipe regente e o rei Jorge III, da Grã-Bretanha, acertaram o apoio da marinha inglesa à transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil. Em troca, a Grã-Bretanha ganhava o direito de ocupar a ilha da Madeira. Isso comprova que a ida da corte para o Brasil não foi um projeto pensado de última hora, apesar do desespero lusitano. Escoltados por navios da poderosa esquadra inglesa, deixaram Lisboa na madrugada fria e escura de uma segunda-feira, dia 30 de novembro. Na confusão da fuga, ouviam-se os gritos de Maria, a Louca: “deixe-me ficar que eu luto”.

Como agradecimento pela “bravura” na fuga, a Coroa Portuguesa no Brasil confere ao francês promoções militares em profusão: tenente, capitão e diretor geral dos índios, uma espécie de FUNAI colonial.


Quando João chegou aqui ele tinha somente 40 anos. O Brasil que ele encontrou estava em pé de guerra, ou de guerras.  A solução encontrada pelos auxiliares mais diretos do rei foi convencê-lo a fazer guerra para desviar o foco dos problemas internos. Precedendo Bush, achavam que poderiam invadir a Guiana Francesa, lá no norte do país, para mostrar a Napoleão e aos inimigos brasileiros que Portugal também tinha macho, e dar um ultimato nos argentinos requerendo direitos sobre a Banda Oriental, atual Uruguai. Mas nem assim as coisas acalmaram. Para atenuar o estresse, João autoriza exterminar algumas tribos consideradas hostis. Segundo ele “para garantir a segurança nos caminhos reais”, criado pelos portugueses para unir a região mineradora ao litoral: é o “Caminho Velho” da Estrada Real.
Como diretor geral dos índios e sem muita cobrança imperial, Guido Marlière fez fortuna e conquistou um lugar na História. Em 1813 chega ao Presídio de São João Batista, hoje Visconde do Rio Branco, para abafar uma tentativa de rebelião. Fez o que achou que deveria fazer: calou os insurretos e ainda “civilizou” gerações de índios que haviam chegado por lá milhares de anos antes dele. Ele sabia que um dos maiores obstáculo para a ocupação da região não era a mata, mais quem a habitava. A região da pequena bacia do rio Pomba era considerada o último refúgio dos purís escorraçados pelos mineradores.  Antes da vinda da Corte portuguesa para o Brasil, Dom João VI havia mudado a concepção política com relação ao indígena, isto é, estudava a possibilidade de “torná-lo civilizado e incorporado como súdito útil ao Império”. Daí o aproveitamento do militar francês Guido Marlière na tarefa de “civilização” dos indígenas da região, sendo considerado o fundador das localidades de Cataguases, Muriaé e Patrocínio de Muriaé. Por conta disso, contribuiu para a formação de povoados vizinhos a Ubá, como Sapé, atual Guidoval.
Guido já era major quando o príncipe Pedro estava em São Paulo recebendo ordens vindas de Lisboa tiravam-lhe o sono e o poder de príncipe regente. Quem deu esta notícia a Pedro foi José Bonifácio, usando uma mensageira belíssima e muito discreta. Junto com as ordens e os afagos, Pedro recebeu um bilhete manuscrito de Bonifácio: “É chegado o momento”. Foi uma espécie de “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” colonial.
         Não se sabe bem quem proclamou a independência do Brasil. Falam do príncipe Pedro, culpam a maçonaria e escrevem até sobre os proprietários de terras e escravos. Todos tinham interesses na separação de Portugal, que insistia em suprimir tribunais, proibir universidades e manter as derramas tributárias. Guido Marlière talvez não. Tanto que não vai a Ouro Preto em 30 de setembro de 1822, dia da adesão oficial da província de Minas Gerais ao novo Imperador. Sua alta patente  praticamente o obrigava a estar presente, mas ele não foi. As idéias liberais de igualdade e fraternidade corriam o mundo e o absolutismo monárquico começava a ser questionado. Era difícil para o soldado monarquista entender que o poder realmente emana do povo e não dos reis. Em 1823 se auto proclama tenente–coronel, comandante da 8ª Brigada do Rio Doce, uma tropa paga criada por uma Carta Régia Imperial de 12 de setembro de 1820, para por fim a uns índios selvagens que transitavam pela estrada, já aberta, de Minas à Corte. Era o “pacificador” em ação novamente.
 Guido Tomas Marlière morreu em 1836, cinco anos depois de Pedro II ser aclamado, e quatro antes de subir ao trono. Tinha 70 anos e era coronel de cavalaria.

Como Ubá deu no que deu...


    Assim como outras cidades, Ubá conserva o hábito de atribuir a uns poucos a construção da sua história. Esses poucos são cultuados e perpetuados nos logradouros e nos livros como verdadeiros autores dos acontecimentos mais importantes destas bandas do Xopotó. Essa visão estreita esquece as transformações naturais de uma sociedade e a participação da massa anônima que não aparece nas placas de rua nas esquinas da cidade. Mas para percebermos isso temos que tentar uma viagem que ajudará a entender melhor as paisagens que observamos na terra da manga e do Aymorés.
       
    Se prestarmos atenção nas pessoas - e nas histórias das pessoas - vamos perceber que a organização do espaço é resultado de uma série de fatores -  históricos, sociais, econômicos, culturais e até naturais. Para entendermos o que aconteceu à nossa volta, é necessário o conhecimento e a análise de fatos e ações que aconteceram no passado e sobre os quais foram se somando e sucedendo novos fatos e novas ações. Anônimas ações em sua maioria. Preste atenção: quando os primeiros exploradores aqui se aventuraram, defrontaram-se duas visões de mundo completamente opostas: a selvageria e a civilização.    
   
  Aos olhos dos destemidos novos bandeirantes da Mata mineira, os pobres puris eram “vadios”, não produziam nada de valor comercial. Na visão dos indígenas, os esquisitos e fedorentos aventureiros possuíam objetos de valor, principalmente ferramentas.   
    
   Ao descobrir matas cheias de oportunidades, os invasores - alguns portugueses e outros nem tanto - perceberam que necessitavam de mão-de-obra para explorar. Os indígenas, por sua vez, enviavam moças para casar com os brancos - que em troca lhes forneciam os objetos desejados. Casando com as índias, os brancos passaram a ter cunhados e parentes nas aldeias. Assim conseguiram pôr milhares de índios a seu serviço. Em todo o Brasil foram gerados mestiços, os mamelucos, que aprenderam com as mães índias uma sabedoria acumulada durante dez mil anos. Desse encontro resultaram dois fatores fundamentais para sermos esse povo bacana: a mestiçagem do corpo e da cultura.
        
  Ubá viveu toda essa grande contradição: de um lado, a capacidade de integrar raças e culturas; de outro, a desigualdade social e a discriminação racial. Só que isso não aparece nos livros nem nas comemorações dos 154 anos. 

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Apesar das minhas roupas rasgadas...


    Esta é uma crônica sobre liberdade. Sobre qualquer liberdade. Até a de fazer uma crônica sobre liberdade. Tenho livre arbítrio. Deus me deu essa prerrogativa. Prometo usar sem abusar. Pensei em escrever sobre a liberdade bebendo na fonte dos Filósofos, viajando rapidamente por Sócrates, Platão e Aristóteles.  Desisti.
   
    Achei que não poderia cometer esse pecado. Os gregos estremeceriam nos túmulos.
   
   Cheguei a ensaiar alguns passos dentro da estética e da ética religiosa, mas esbarrei em minha formação cristã ocidental, hermeticamente fechada em minha ignorância eclesiástica. Sonhei em usar o pensamento renascentista, mas Michelangelo e da Vinci fugiram da responsabilidade de inspirar qualquer conceito de liberdade. Entrei em “sites” moderninhos que relacionam a liberdade com a violência, com a Revolução Industrial e com a mais valia. Ficou complicado, mas daria para escrever uma tese contextualizando a liberdade do homem, desde o sapiens até os vascaínos, usando ferramentas e exemplos já utilizados por George Orwel, Stanley Kubrick, e Wood Allen.      
   
   Claro que as Guerras Mundiais, a intolerância étnica, o militarismo, a derrota do Eixo e Hiroshima ilustrariam minha pretensiosa crônica decantando a liberdade. Mas desisti de escrever. Desisti porque para ser interessante essa crônica teria que contemplar a liberdade desde o Jurássico, passando pelos anos 60 com o “é proibido proibir” dos franceses, até as Torres Gêmeas e a loucura americana. Teria que fazer pensar na globalização e o fim da teoria do neoliberalismo libertador. E isso eu não sei fazer. 
   
   Por conta disso chequei uma conclusão, mesmo que não seja exatamente o fim, mas o que vem depois disso: para escrever sobre liberdade tenho que parar de tratá-la como bordão, como produto, como slogan publicitário. Essa banalização contribui efetivamente para nivelar por baixo conceitos e idéias de resgate da cidadania, melhor solução que encontro para liberdade. Afinal não é o excluído que trafica ou o menino que nasceu num gueto de favela e resolveu ser bandido, ou ainda o operário de salário mínimo que se marginalizou para sustentar a família o grande inimigo da liberdade. Ou vocês acham que os derrotados pela miséria não querem ser livres?
  
  Meus apelos deveriam ser direcionados para os banqueiros que não pagam impostos, aos latifundiários que matam camponeses, aos laboratórios e aos planos privados de saúde que fazem a regra do jogo, à televisão com sua programação de violência e mentira. Os apelos deveriam atingi-los e envergonhar o executivo desonesto, o parlamentar corrupto e judiciário comprometido; aos “bispos” com letras minúsculas que roubam dízimo de empregadas e operários; a polícia que assusta mais do que acalma; os traficantes colunáveis e os viciados que moram nas ‘Vieira Souto’ da vida. É claro que até eles querem ser livres, mas são eles que fabricam a miséria e a violência.
  
    Minha solidariedade aos que vivem comigo a utopia de um mundo mais justo. 

Violência do jeito que se sente

    O que você mudaria na sua vida?

    Com que você anda convivendo e não agüenta mais?
Vamos lá... Faça um esforço. Deve haver muita coisa errada a seu redor e você nem da conta. Os arrependimentos não entram nas estatísticas. Nem os vacilos. “Ah, se eu tivesse escutado meu pai...  Se  eu tivesse casado com ela. A terceira fortuna do estado...  Devia ter feito vestibular para biblioteconomia. Hoje estaria tranqüilo...  Se eu tivesse ido. Se não tivesse...”
Nossas acomodações ficam na maioria das vezes exclusivas do público interno.      
    Sofremos calados.
Esta semana tive mais uma prova de que  não estamos neste planeta a passeio. Isso não é bem uma viagem de férias. Tudo vem, passa por nós e se vai. Tudo e todos que amamos se vão. Cedo ou tarde.

    Perdi um amigo esta semana. 37 anos.
    Não nos víamos a cinco.
    Nesse tempo deixamos de nos encontrar em casamentos, aniversários, festas, festas e outras festas. Tinha um filho da idade de um dos meus, cinco anos.  Fui ao enterro. Viajei mais de oito horas. Fico pensando se ele me ligasse convidando para uma pelada ou um churrasco. Será que eu despencaria de Ubá a São Lourenço? Com certeza não iria.      

    Ele vivia em São Lourenço, vivia me convidando, nunca fui.
  Queria, profundamente, mudar isso. Não é possível. Despedi-me de um amigo chorando muito, arrebentado por dentro, arrependido por não ter sido menos burocrático. Menos acomodado. Menos mesquinho. Menos normal.
    
    Fui enterra-lo sem ter sido convidado. Ele não teve tempo.
    
    Essa vida, às vezes,  é bem mediocrezinha.

    Até um dia, meu amigo.Nessa calma cristalina eu te encontro qualquer dia. A gente se encontra.     Não mais no amarelo de um sol nem na cerveja de um bar.
        
    Juro que gostaria de ser poeta pra explicar isso melhor.

Portas fechadas

         José saiu de casa muito cedo. Mulher e três filhos ainda dormiam nos dois cômodos que fez nos fundos da casa de sua sogra. Sem tempo e zelo para o café ralo e puro, caminhou apresado rumo ao ponto da única linha de coletivos que serve sua comunidade. O bruto veio atrasado, lotado e mal cuidado. Tarifado pela ida e pela volta por meio dia de serviço que José nem tem.
         Horas intermináveis, com fumaça e buraco, pigarros e bocejos. Parecia uma coreografia mal ensaiada com bailarinos como ele. Fim do primeiro trecho, numa Central do Brasil muito longe de ser 'róliude'. José entre centenas, milhares talvez, de outros josés, manés e bonés. As portas fechadas por preocupação, o dia começando lá fora e a cidade descobrindo seus sons e sonhos urbanos. Camelôs e prostitutas; menores abandonados; ladrões e trabalhadores; todos em um mesmo fundo de tela. Vários josés, centenas de marias, outros tantos anônimos, disputando uma corrida sem chegada, sem podium, sem nada.
        José confere o recorte de jornal: “Temos vagas”. Sonha novamente, pensa na mulher, nos filhos, na cachaça e no farto almoço. Na marmita, abobrinha frita e carne de pescoço. Mais lotação, mais condução, mais confusão. De novo lotado, de novo mais caro, José sacudindo rumo ao endereço recortado, mal cortado. No ônibus, um grito, um susto, um assalto, um beijo, um pastor e duas putas. Um motorista rude, um cobrador sem alma, um ponto final longe da calçada. Desce José, com o papelzinho na mão e uma esperança na cabeça. Fosse ele um cineasta do cinema novo, faria um daqueles filmes que não são compreendidos.
         Desembola o papel e confirma o endereço. “Há Vagas”. José sorri, mas nem percebe.  Tempo não tem, mas lhe deram. Porta fechada. Reabre depois, quando o chefe quiser. José vê a obra, João olha as horas, caminha na calçada pro tempo passar, mas a fome não passa. Espera na banca, lendo manchetes com outros josés, algumas marias: Palestinos  e atentados,  Congo e campos da morte, Grécia e desespero, dólar despenca, demissão de metalúrgicos, assassinatos de sem-terra, mandantes absolvidos, explosões de bueiros,   topetes e jogadores de futebol, frutas e mulheres, impunidade, crime organizado e polícia desorganizada, seca malvada, chuvas ingratas, padres pedófilos e comunistas ungidos, políticos canalhas e descuido ou descaso, maracutaias e deputados, besteiras e mulheres peladas.

         Os sons da rua, uma rua do Centro, ambulância e pedintes, freadas e discussão, vitrines e ofertas, estudantes e secretárias, gravatas e apertos. José confere a porta fechada, fila de dez, 12 talvez. Mais uma vez, a porta fechada se abre pro aviso – “ficha só depois do almoço! – procurem o dotô!”, que vai ver, nem formou, mas é doutor. José ganhou tempo sem pedir, pensa na mulher, pensa nos meninos, dois na escola sem professor, um com a avó. A mulher na lida, na luta, faxinando o sustento em casas vizinhas. Lembrou da promessa: “Só volto empregado!” Perdeu meio dia, mas não a marmita. Almoça sentado, é abordado por um PM fardado, os documentos mostrados, a dúvida, o esculacho, o desrespeito, a vergonha e a porta fechada.
       José pensa no bairro, na rua, na vila. Lembra do barro, do mato, dos ratos. Imagina ambulância, hospital, doutor, vacina, saneamento, escola, condução, jornal, prefeito e polícia no seu bairro distante, feudo de traficante. Ri sozinho do dengo, do Mengo e da vida. Vasculha a memória, se lembra  de um sorriso que deu na infância, doce lembrança no sal da avenida cinzenta que mantém  portas fechadas.
         Porta aberta, José se assanha, se apressa e se apresenta pro mestre de obras que tem  emprego e afilhado, José chegou tarde. Porta fechada. Mais uma na cara. José desde cedo na rua, procurando trabalho, não quer ser bandido, não quer sem mendigo, não quer ver seus filhos chorando ou no crime, quer trabalho e cidadania, quer respeito e cafuné na nuca. José chora pra dentro, soluça escondido.
        Seis da tarde, hora de ir embora, gente com pressa andando ligeiro, esse é o Rio de Janeiro. Na volta pra casa, o pensamento distante, a promessa quebrada, um guarda safado, um bandido estirado, dois ônibus lotados, os últimos trocados, o santo xingado, sua rua esburacada, sem poste, sem ambulância, sem segurança, um cachorro enjoado lhe morde o calçado, José chuta o bicho pro lado. Nesse instante surge a vizinha: “Não chuta o cachorro, José, violência não!”

         José nem responde. Não tem nem por onde.

         Em casa, porta fechada.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Topetes e os bonés de churrascaria

Essa crônica é sobre futebol. Mais especificamente sobre a seleção brasileira, ou ainda, o que parte da mídia pensa que a gente sente pela seleção. Coisas tipo “pátria de chuteiras”, “seleção brasileira é orgulho nacional”, “treinador da seleção é o cargo mais importante da nação”, e - ah, essa é ótima - “amor à camisa”.
         Após o empate com a terrível e temível Venezuela, os repórteres, uníssonos, ressaltaram a humildade do Mano, a garra do time, e o (Deus do céu) amor à camisa.  Só sei que pareceu que sou talvez o sujeito menos brasileiro que existe. Não sinto nada disso. Nunca achei que fosse pessoal, mas agora tenho certeza. Principalmente depois que o Galvão Bueno falou que o Ganso estava “com lágrimas nos olhos”.
           Juro que achei que aquela vibração dos reservas confraternizando com os titulares fosse orientação tática do treinador. Nunca imaginei que todos se emocionariam com o abraço do goleiro reserva no titular. E o Galvão lá, me provocando... “Haja coração!” (sete vezes em dois minutos).
          Acho que meu país me abandonou, e comigo dentro, o que é pior. Será que deixei de ser brasileiro ou o ufanismo exagerado ainda não me afetou? Mas apesar de minha estranha indiferença, a festa comia solta. De repente, os discursos se misturavam. Era um tal de “união do grupo...”, “...um ajudando o outro...”, como se o Brasil de Brasília fosse o mesmo que o Brasil do Elano.  Confesso que não sou a pessoa mais indicada para falar das coisas do futebol. Na prática não passo de um esforçado marcador do Alan, alambrado, e na teoria, torço pro Fluminense. Só isso justificaria minha não adequação para as quatro linhas. Mas de bom senso eu entendo. Aos poucos venho desistindo do futebol. Os culpados de minha retirada estratégica são vários, a começar por mim. Sempre vi o futebol como uma coisa quase viva. Desforme, desequilibrada e fascinante. Na cabeça a CBF, sanguessuga, cega, surda, às vezes muda (exceto em juízo). Capaz de vender as cores da bandeira como uma coisa, como se realmente aquilo que eles vendem fosse a pátria. Logo depois deles, os cartolas dos clubes, que fazem desses uma extensão de seus domínios. “Eu ganhei, nós empatamos, eles perderam”.
        O tronco, os jogadores, os artistas do espetáculo. Impávidos, limitados, “tatibitantes”, com seus carrões e CD’s duvidosos. A estupidez anabolizada, a falsa destreza, os bonés de churrascaria. São obedientes, sorridentes e desorganizados. Enfim, a própria seleção natural de Darwin. Na alma, a torcida, que nem existe mais, quer dizer, existe, mas não é torcida. São bandos. Dois bandos acéfalos. Um de bandidos que pixam, que apedrejam, que jogam bombas, que matam. Outro ridículo, com cartazes “alô, Galvão, filma nós”. Existe outra torcida, eu sei, mas essa não aparece na TV do Galvão, que continua fazendo sua feira via satélite, elogiando pernas de pau comissionados.
        Esse comércio suplantou a ditadura que pregava a pátria de chuteiras. O Futebol S.A. tirou a alegria do futebol. Tirou o charme, a beleza, a decência. Moral da história: sinto que o Brasil está me abandonando sem que eu saia dele. Eu precisava dividir isto com você. Quem sabe eu não esteja sozinho nesta loucura que chegamos. Se por acaso você estiver na mesma situação, mande um sinal para que eu possa tirá-lo desta depressão. Pode ser divertido a gente se unir para não torcer para ninguém.
    

Portas fechadas

José saiu de casa muito cedo. Mulher e três filhos ainda dormiam nos dois cômodos que fez nos fundos da casa de sua sogra. Sem tempo e zelo para o café ralo e puro, caminhou apresado rumo ao ponto da única linha de coletivos que serve sua comunidade. O bruto veio atrasado, lotado e mal cuidado, tarifado pela ida e pela volta por meio dia de serviço que José nem tem. Horas intermináveis, com fumaça e buraco, pigarros e bocejos.

Parecia uma coreografia mal ensaiada com bailarinos como  ele.

Fim do primeiro trecho, numa Central do Brasil  muito longe de ser holywoodiana. José entre centenas, milhares talvez de outros josés, manés e bonés. As portas fechadas por preocupação, o dia começando lá fora e a cidade descobrindo seus sons e sonhos urbanos. Camelôs e prostitutas, menores abandonados, ladrões e trabalhadores, todos em um mesmo fundo de tela. Vários josés, centenas de marias, outros tantos anônimos, disputando uma corrida sem chegada, sem podium, sem nada.
           José confere o recorte de jornal: “Temos vagas”. Sonha novamente, pensa na mulher, nos filhos, na cachaça e no farto almoço. Na marmita, abobrinha frita e carne de pescoço. Mais lotação, mais condução, mais confusão. De novo lotado, de novo mais caro, José sacudindo rumo ao endereço recortado, mal cortado. No ônibus, um grito, um susto, um assalto, um beijo, um pastor e duas putas. Um motorista rude, um cobrador sem alma, um ponto final longe da calçada. Desce José, com o papelzinho na mão e uma esperança na cabeça. Fosse ele um cineasta do cinema novo, faria um daqueles filmes que não são compreendidos.

            Desembola o papel e confirma o endereço. “Há Vagas”. José sorri, mas nem percebe.  Tempo não tem, mas lhe deram. Porta fechada. Reabre depois, quando o chefe quiser. José vê a obra, João olha as horas, caminha na calçada pro tempo passar, mas a fome não passa. Espera na banca, lendo manchetes com outros josés, algumas marias: Palestinos  e atentados,  Congo e campos da morte; Grécia e desespero, dólar despenca, demissão de metalúrgicos, assassinatos de sem-terra, mandantes absolvidos, tiros na prefeitura; Neymar e Ganso; Sarney e impunidade, crime organizado e polícia desorganizada, seca malvada, chuvas ingratas, padres pedófilos e comunistas ungidos, políticos canalhas e descuido ou descaso, maracutaias e deputados, besteiras e mulheres peladas.
            Os sons da rua, uma rua do Centro, ambulância e pedintes, freadas e discussão, vitrines e ofertas, estudantes e secretárias, gravatas e apertos. José confere a porta fechada, fila de dez, doze talvez. Mais uma vez, a porta fechada se abre pro aviso – “ficha só depois do almoço! – procurem o dotô!”, que vai ver, nem formou, mas é doutor. José ganhou tempo sem pedir, pensa na mulher, pensa nos meninos, dois na escola sem professor, um com a avó. A mulher na lida, na luta, faxinando o sustento em casas vizinhas. Lembrou da promessa: “Só volto empregado!” Perdeu meio dia, mas não a marmita. Almoça sentado, é abordado por um PM fardado, os documentos mostrados, a dúvida, o esculacho, o desrespeito, a vergonha e a porta fechada.      José pensa no bairro, na rua, na vila. Lembra do barro, do mato, dos ratos. Imagina ambulância, hospital, doutor, vacina, saneamento, escola, condução, jornal, prefeito e polícia no seu bairro distante, feudo de traficante. Ri sozinho do dengo, do Mengo e da vida. Vasculha a memória, se lembra  de um sorriso que deu na infância, doce lembrança no sal da avenida cinzenta que mantém  portas fechadas.

            Porta aberta, José se assanha, se apressa e se apresenta pro mestre de obras que tem  emprego e afilhado, José chegou tarde. Porta fechada. Mais uma na cara. José desde cedo na rua, procurando trabalho, não quer ser bandido, não quer sem mendigo, não quer ver seus filhos chorando ou no crime, quer trabalho e cidadania, quer respeito e cafuné na nuca. José chora pra dentro, soluça escondido. Seis da tarde, hora de ir embora, gente com pressa andando ligeiro, esse é o Rio de Janeiro. Na volta pra casa, o pensamento distante, a promessa quebrada, um guarda safado, um bandido estirado, dois ônibus lotados, os últimos trocados,  o santo xingado, sua rua esburacada, sem poste, sem ambulância, sem segurança, um cachorro enjoado lhe morde o calçado, José chuta o bicho pro lado. Nesse instante surge a vizinha: “Não chuta o cachorro, José, violência não!”
            José nem responde. Não tem nem por onde.
            Em casa, porta fechada.