sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O lado de dentro dos rótulos

Quem vê as belas mãos e os pés descalços não imagina seus 73 anos. Desembaraçada e receptiva, nossa entrevistada tornou fácil e agradável a tarefa de cumprir a pauta. Dona Alzira é uma dessas pessoas que encantam pela simplicidade. Fez questão de me fazer entrar, sentar e ficar à vontade, enquanto passava um fresco café, contrariando todas as lições passadas pelos profetas que anunciam que “de perto ninguém é normal”.
O café foi meu primeiro presente. O cheiro forte da efusão, o gosto encorpado do pó e  o contraste com o açúcar adoçaram, literalmente, nosso bate papo, entre xícaras e um gravador.
            Nome? Idade? Filhos? Gosta de morar aqui? Perguntas comuns, obrigatórias, todas amarradas pelos manuais e pelas receitas de bolo que costumam ser os perfis. Não fiz nenhuma delas, mas ela respondeu a todas, sempre sorrindo, sempre adiantando respostas.
            Dona Alzira é franca, e franqueza às vezes arranha.
         
         Tem uma forma clara de levar a vida, com coragem e honestidade. Esse negócio de “levar vantagem em tudo” não serve para ela. Sabe consertar coisas: um alicate, uma chave de fenda, fita isolante e pronto! Só não conserta o que não tem jeito, embora tente primeiro. Gosta de bandas de música, adora dobrados. Quando escuta, volta a ser menina. Lembra do tempo que seu Ambrósio a levava pela mão, para escutar, no coreto do jardim a “22 de Maio” tocar.
            Gosta dos vizinhos, gosta da cidade, gosta até de novela. Estudo não tem, ou melhor, estudou até aos 15 anos, casou aos 19. Criou filhos e raízes na Arnaldo Jansen. Comerciante e costureira, gosta de música romântica e detesta o Faustão. Prefere um do SBT, que nem eu nem ela lembramos o nome.
            Tem mania de fazer palavras cruzadas, é craque. O bolo de difíceis “Recreativas” era prova mais do que necessária para não questionar seu vocabulário. Gosta indecentemente dos filhos. O que um sente, ela sente também, até da filha Regina Helena, espiral de dor, incurável, precoce, irreparável, injusta e intolerável perda. Dor desatinada compartilhada com o marido e filhos.
Quase perguntei como Regina Helena morreu. Ainda bem que me calei, e calado permaneci, olhando seus olhos miúdos espremidos atrás dos óculos, enxergando a vida através da saudade. Percebi a tempo que os rótulos de uma avenida são tristes quanto vistos por dentro. Nunca mais escrevo esquina da morte com maiúsculas.
Mas Alzira sabe que mesmo triste, o olhar é para frente, que a vida á para ser vivida com alegria, com amor, com esperança e fé! Ela sabe e ensina. Ensina aos filhos com vivência, com bem-querer. Por eles vai aos céus, e já desceu aos infernos. Para eles deixará, como seu pai deixou, a herança maior, que a vida é luta, é fardo, é dor, mas também é alegria, é prazer, encontro, honra, caráter e amor.
O que importa mesmo é uma lembrança boa, uma saudade doida, doída, companheira. Alzira disse isso sorrindo com o corpo todo, boca, mãos, quadril. Senti falta dos olhos, mas entendi porquê.
            Sai de lá com saudades de um amigo já encantado e tive mais uma prova de que não estamos neste planeta a passeio. Isso não é bem uma viagem de férias. Tudo vem, passa por nós e se vai. Tudo e todos que amamos se vão. Cedo ou tarde. Queria profundamente mudar isso, mas não é possível. Me despedi de Dona Alzira chorando por dentro. Essa vida, às vezes, é bem mediocrezinha. 
            Até um dia, Regina Helena. Até um dia meu amigo. Obrigado dona Alzira, e me desculpe, mas não vou tirar fotografias.


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