segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Violência do jeito que se sente

José saiu de casa muito cedo. Mulher e três filhos ainda dormiam nos dois cômodos que fez nos fundos da casa de sua sogra. Sem tempo e zelo para o café ralo e puro, caminhou apresado rumo ao ponto da única linha de coletivos que serve sua comunidade. O bruto veio atrasado, lotado e mal cuidado, tarifado pela ida e pela volta por meio dia de serviço que José nem tem.
        Horas intermináveis com fumaça e buraco, pigarros e bocejos. Parecia uma coreografia mal ensaiada com bailarinos como ele. Fim do primeiro trecho numa Central do Brasil  muito longe de ser holywoodiana. José entre centenas, milhares talvez, de outros josés, manés e bonés. As portas fechadas por preocupação, o dia começando lá fora e a cidade descobrindo seus sons e sonhos urbanos. Camelôs e prostitutas, menores abandonados, ladrões e trabalhadores, todos em um mesmo fundo de tela. Vários josés, centenas de marias, outros tantos anônimos disputando uma corrida sem chegada, sem podium, sem nada.
         José confere o recorte de jornal: “Temos vagas”. Sonha novamente, pensa na mulher, nos filhos, na cachaça e no farto almoço. Na marmita, abobrinha frita e carne de pescoço. Mais lotação, mais condução, mais confusão. De novo lotado, de novo mais caro, José sacudindo rumo ao endereço recortado, mal cortado. No ônibus um grito, um susto, um assalto, um beijo, um pastor e duas putas. Um motorista rude, um cobrador sem alma, um ponto final longe da calçada. Desce José com o papelzinho na mão e uma esperança na cabeça. Fosse ele um cineasta do cinema novo faria um daqueles filmes que não são compreendidos.
         Desembola o papel e confirma o endereço. “Há Vagas”. José sorri, mas nem percebe.  Tempo não tem, mas lhe deram. Porta fechada. Reabre depois, quando o chefe quiser. José vê a obra, João olha as horas, caminha na calçada pro tempo passar, mas a fome não passa. Espera na banca lendo manchetes com outros josés, algumas marias: Palestinos  e atentados,  Congo e campos da morte, Argentina e desespero, preços sobem com o dólar, demissão de metalúrgicos, assassinatos de sem-terra, mandantes absolvidos, tiros na prefeitura, Líbia e Mubarak,  Ronaldo e Ronaldinho, Sarney e impunidade, crime organizado e polícia desorganizada, seca malvada, chuvas ingratas, padres pedófilos e comunistas ungidos, políticos canalhas e descuido ou descaso, tucanagens e petralhas, besteiras e mulheres peladas.
         Os sons da rua, uma rua do Centro, ambulância e pedintes, freadas e discussão, vitrines e ofertas, estudantes e secretárias, gravatas e apertos. José confere a porta fechada, fila de dez, doze talvez. Mais uma vez, a porta fechada se abre pro aviso – “ficha só depois do almoço! – procurem o dotô!”, que vai ver, nem formou, mas é doutor. José ganhou tempo sem pedir, pensa na mulher, pensa nos meninos, dois na escola sem professor, um com a avó. A mulher na lida, na luta, faxinando o sustento em casas vizinhas. Lembrou da promessa: “Só volto empregado!” Perdeu meio dia, mas não a marmita. Almoça sentado, é abordado por um PM fardado, os documentos mostrados, a dúvida, o esculacho, o desrespeito, a vergonha e a porta fechada.
          José pensa no bairro, na rua, na vila. Lembra do barro, do mato, dos ratos. Imagina ambulância, hospital, doutor, vacina, saneamento, escola, condução, jornal, prefeito e polícia no seu bairro distante, feudo de traficante. Ri sozinho do dengo, do Mengo e da vida. Vasculha a memória, se lembra  de um sorriso que deu na infância, doce lembrança no sal da avenida cinzenta que mantém  portas fechadas.
          Porta aberta, José se assanha, se apressa e se apresenta pro mestre de obras que tem  emprego e afilhado, José chegou tarde. Porta fechada. Mais uma na cara. José desde cedo na rua, procurando trabalho, não quer ser bandido, não quer sem mendigo, não quer ver seus filhos chorando ou no crime, quer trabalho e cidadania, quer respeito e cafuné na nuca. José chora pra dentro, soluça escondido.
          Seis da tarde, hora de ir embora, gente com pressa andando ligeiro, esse é o Rio de Janeiro. Na volta pra casa, o pensamento distante, a promessa quebrada, um guarda safado, um bandido estirado, dois ônibus lotados, os últimos trocados,  o santo xingado, sua rua esburacada, sem poste, sem ambulância, sem segurança, um cachorro enjoado lhe morde o calçado, José chuta o bicho pro lado. Nesse instante surge a vizinha: “Não chuta o cachorro, José, violência não!”
          José nem responde. Não tem nem por onde.
          Em casa, outra porta fechada.

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