quinta-feira, 7 de julho de 2011

Um francês no Xopotó?

      
Guido Tomas Marlière era francês. Era o que diziam. Nasceu em 1767. Foi soldado monarquista combatente da Revolução Francesa quando tinha 22 anos. Lutou ao lado da elite francesa, cuja base era a desigualdade social.  Lutou, portanto, ao lado dos que perderam. Por isso mesmo foi obrigado a asilar-se na Inglaterra, onde não se deu muito bem, uma vez que, com as execuções do rei francês Luís XVI, em janeiro de 1793, e de sua esposa, Maria Antonieta, em outubro do mesmo ano, qualquer francês simpático ao antigo regime deveria estar bem distante de Paris.
Marlière então se manda para Portugal e se alista como porta-estandarte no exército do cambaleante Império Português, que foi invadido em 1807 por um general francês de 1,58 metros, vaca fardada de Napoleão, que queria forçar Portugal a entrar no bloqueio continental contra a Inglaterra. Dom João VI, que governava Portugal substituindo sua mãe Maria que havia surtado, depois de pensar bastante, decide não magoar sua tradicional aliada Inglaterra nem enfrentar Napoleão e seus canhões. Dom João resolve se mudar para o Brasil, trazendo na bagagem milhares de súditos leais, entre esses estava Guido Marlière.
Numa noite fria, gelada até, de novembro de 1807, um tumulto formava-se às margens do Tejo. Cerca de 15 mil mil pessoas dentro de navios ancorados preparavam-se para uma fuga quase que desesperada. Toda a realeza, boa parte da nobreza e as camadas mais altas do clero se amontoavam em pequenas embarcações rumo às naus, fragatas e escunas que atravessariam o Atlântico. Outros 20 navios da marinha mercante dividiam a pesada carga do espólio português rumo ao exílio forçado.
Em  outubro de 1807, um mês antes da fuga, o príncipe regente e o rei Jorge III, da Grã-Bretanha, acertaram o apoio da marinha inglesa à transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil. Em troca, a Grã-Bretanha ganhava o direito de ocupar a ilha da Madeira. Isso comprova que a ida da corte para o Brasil não foi um projeto pensado de última hora, apesar do desespero lusitano. Escoltados por navios da poderosa esquadra inglesa, deixaram Lisboa na madrugada fria e escura de uma segunda-feira, dia 30 de novembro. Na confusão da fuga, ouviam-se os gritos de Maria, a Louca: “deixe-me ficar que eu luto”.

Como agradecimento pela “bravura” na fuga, a Coroa Portuguesa no Brasil confere ao francês promoções militares em profusão: tenente, capitão e diretor geral dos índios, uma espécie de FUNAI colonial.


Quando João chegou aqui ele tinha somente 40 anos. O Brasil que ele encontrou estava em pé de guerra, ou de guerras.  A solução encontrada pelos auxiliares mais diretos do rei foi convencê-lo a fazer guerra para desviar o foco dos problemas internos. Precedendo Bush, achavam que poderiam invadir a Guiana Francesa, lá no norte do país, para mostrar a Napoleão e aos inimigos brasileiros que Portugal também tinha macho, e dar um ultimato nos argentinos requerendo direitos sobre a Banda Oriental, atual Uruguai. Mas nem assim as coisas acalmaram. Para atenuar o estresse, João autoriza exterminar algumas tribos consideradas hostis. Segundo ele “para garantir a segurança nos caminhos reais”, criado pelos portugueses para unir a região mineradora ao litoral: é o “Caminho Velho” da Estrada Real.
Como diretor geral dos índios e sem muita cobrança imperial, Guido Marlière fez fortuna e conquistou um lugar na História. Em 1813 chega ao Presídio de São João Batista, hoje Visconde do Rio Branco, para abafar uma tentativa de rebelião. Fez o que achou que deveria fazer: calou os insurretos e ainda “civilizou” gerações de índios que haviam chegado por lá milhares de anos antes dele. Ele sabia que um dos maiores obstáculo para a ocupação da região não era a mata, mais quem a habitava. A região da pequena bacia do rio Pomba era considerada o último refúgio dos purís escorraçados pelos mineradores.  Antes da vinda da Corte portuguesa para o Brasil, Dom João VI havia mudado a concepção política com relação ao indígena, isto é, estudava a possibilidade de “torná-lo civilizado e incorporado como súdito útil ao Império”. Daí o aproveitamento do militar francês Guido Marlière na tarefa de “civilização” dos indígenas da região, sendo considerado o fundador das localidades de Cataguases, Muriaé e Patrocínio de Muriaé. Por conta disso, contribuiu para a formação de povoados vizinhos a Ubá, como Sapé, atual Guidoval.
Guido já era major quando o príncipe Pedro estava em São Paulo recebendo ordens vindas de Lisboa tiravam-lhe o sono e o poder de príncipe regente. Quem deu esta notícia a Pedro foi José Bonifácio, usando uma mensageira belíssima e muito discreta. Junto com as ordens e os afagos, Pedro recebeu um bilhete manuscrito de Bonifácio: “É chegado o momento”. Foi uma espécie de “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” colonial.
         Não se sabe bem quem proclamou a independência do Brasil. Falam do príncipe Pedro, culpam a maçonaria e escrevem até sobre os proprietários de terras e escravos. Todos tinham interesses na separação de Portugal, que insistia em suprimir tribunais, proibir universidades e manter as derramas tributárias. Guido Marlière talvez não. Tanto que não vai a Ouro Preto em 30 de setembro de 1822, dia da adesão oficial da província de Minas Gerais ao novo Imperador. Sua alta patente  praticamente o obrigava a estar presente, mas ele não foi. As idéias liberais de igualdade e fraternidade corriam o mundo e o absolutismo monárquico começava a ser questionado. Era difícil para o soldado monarquista entender que o poder realmente emana do povo e não dos reis. Em 1823 se auto proclama tenente–coronel, comandante da 8ª Brigada do Rio Doce, uma tropa paga criada por uma Carta Régia Imperial de 12 de setembro de 1820, para por fim a uns índios selvagens que transitavam pela estrada, já aberta, de Minas à Corte. Era o “pacificador” em ação novamente.
 Guido Tomas Marlière morreu em 1836, cinco anos depois de Pedro II ser aclamado, e quatro antes de subir ao trono. Tinha 70 anos e era coronel de cavalaria.

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